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 Tania Regina de Luca (UNESP)

 

 

Algumas notas metodológicas sobre listagens de periódicos

Publicado em 02/06/2016
Atualizado em 25/09/2016

Num livro instigante, Umberto Eco propôs-se a investigar a natureza das listas e distinguiu entre a lista poética, que cumpre finalidade artística, e a prática. Vale acompanhar suas considerações sobre esse segundo tipo de arrolamento:

A lista prática pose ser exemplificada pela lista de compras, pela lista de convidados de uma festa, pelo catálogo de uma biblioteca, pelo inventário de objetos de um lugar qualquer (como um escritório, um arquivo ou um museu, pelo elenco de bens de que um testamento dispõe, por uma fatura de mercadorias cujo pagamento se exige, pelo cardápio de um restaurante, pelo elenco dos lugares a serem visitados num guia turístico e até mesmo pelo vocabulário que registra todas as palavras do léxico de uma determinada língua.
Estas listas têm três características: antes de tudo, tem uma função puramente referencial, ou seja, referem-se a objetos do mundo exterior e tem o objetivo puramente prático de nomeá-los e elencá-los (…); em segundo lugar, como são elencos de objetos realmente existentes e conhecidos, são listas finitas, pois pretendem elencar os objetos a que se referem e mais nenhum – e tais objetos se estão fisicamente presentes em algum lugar, tem evidentemente um número definido; enfim, elas não são alteráveis, no sentido de que seria incorreto, além de insensato, acrescentar ao catálogo de um museu um quadro que não estivesse lá. [1]

Um dos desafios do projeto TRANSFOPRESS é o de estabelecer, da forma mais completa possível, os títulos de periódicos em língua estrangeira publicados entre nós desde a introdução da imprensa. O objetivo afigura-se modesto e, pelo menos em tese, pode ser considerado um passo anterior ao estudo sistemáticos de títulos específicos, outra das tarefas a serem cumpridas no âmbito da pesquisa. Entretanto não são poucas as dificuldades enfrentadas por quem se aventure a realizar a empreitada.

É inegável que o acesso aberto a catálogos e acervos de instituições de guarda facilitaram, de modo muito significativo, a consulta à documentação. Merece particular destaque o programa de digitalização lançado pela Biblioteca Nacional em 2006 e que já disponibilizou mais de cinco mil títulos no sítio da Hemeroteca Digital Brasileira, o que modificou profundamente as condições e possibilidades de pesquisa. Porém, ainda há uma longa lista de exemplares que devem ser digitalizados, além de outros que aguardam por restauração e alguns tão danificados que permanecem inacessíveis aos interessados.

A estratégia para começar a produzir uma lista confiável de periódicos impressos no Brasil e escritos, total ou parcialmente, em língua diversa do português foi recorrer aos catálogos da Biblioteca Nacional (Catálogo Geral, Catálogo de Periódicos Raros, Catálogo de Periódicos Microfilmados e Catálogos de Periódicos Digitalizados) e da Biblioteca Mário de Andrade, as duas instituições mais importantes do país em termos de acervos, e à Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), atualmente sob a responsabilidade do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). A consulta ao Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) da Unicamp revelou que os títulos da instituição replicavam o havia na Biblioteca Nacional, razão pela qual este acervo não integra a amostra. O esforço foi o de precisar o título, local de publicação, período e quantidade de números disponíveis nas instituições de guarda, com o objetivo de ofertar um roteiro seguro a respeito do que está disponível para um pesquisador interessado na temática.

É preciso considerar que grande parte desses jornais provém de comunidades imigrantes, formadas por trabalhadores que, a despeito dominarem a leitura, não eram profissionais da área. Uma das características marcantes desses impressos era a sua fragilidade pois a grande maioria não era produzida para competir no mercado, mas destinava-se aos membros da comunidade, razão pela qual eram redigidos na língua nativa. Tratava-se de um produto artesanal, no mais das vezes confeccionado com papel e tinta de má qualidade, montados e impressos em equipamentos simples, movidos pela força humana. Tinham periodicidade incerta, duração curta e gestão que não seguia a lógica dos lucros. É patente que as próprias circunstâncias de produção e circulação acabavam por comprometer a durabilidade dessas folhas e não lhes vaticinavam grande perenidade.

A despeito de o depósito legal datar de 1907, quando a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tornou-se a depositária da integralidade do que fosse impresso no território brasileiro, a medida parece não ter sido suficiente para obrigar todos os editores a enviar uma cópia para a instituição. Infelizmente, não se dispõe de inventários detalhados a respeito da origem dos fundos das bibliotecas. Uma exceção são os Registros de Jornais e Revistas, dois livros relativos aos anos 1911-1925 e 1926-1934, nos quais funcionários da antiga Biblioteca Pública do Estado de São Paulo, fundada em 1911, anotavam as informações relativas aos periódicos disponíveis para leitura pública. Esse material contém dados sobre o título, proprietário, data de entrada na instituição, língua e proveniência (compra ou doação), periodicidade etc. [2] Em 1937, todo o acervo desta biblioteca, inclusive os livros mencionados, passou para a esfera do município e foi incorporado à Biblioteca Municipal de São Paulo, criada em 1925, inaugurada em 1926 e que a partir de 1960 recebeu o nome do escritor modernista Mário de Andrade. As informações tão meticulosamente anotadas são a prova que esse material entrou na instituição, ainda que hoje não restem traços da maior parte desses títulos.

Tal situação indica que, mesmo se algumas publicações possam ter chamado a atenção no momento de sua circulação, elas acabaram por não permanecer na instituição. Como se sabe, a decisão de preservar é marcada pela percepção do que é socialmente valorizado num dado momento histórico. A mutação das temáticas de pesquisa, dos catálogos de editoras, da recolha de documentos, dos fac-símiles e, mais recentemente, do processo de digitalização constituem testemunhos pungentes de como a política em relação aos vestígios do passado, próximos ou longínquos, alterou-se ao longo do tempo. Pode-se imaginar que, durante a maior parte do século XX, as frágeis publicações em língua estrangeiras foram consideradas menores e sem interesse para o futuro, situação que justificaria sua exclusão frente à necessidade de mais espaço nas prateleiras. Outro aspecto que não pode ser negligenciado é a fragilidade inerente desses impressos, mais susceptíveis à ação do tempo, independentemente da política de preservação adotada.

Entretanto, escolhas são sempre sociais e têm repercussões em todos os campos, inclusive nos temas de pesquisa. As pequenas folhas dos bairros pobres, das sociedades de socorros mútuos, dos operários, das associações religiosas e de imigrantes, assim como os jornais sindicais, os produzidos pelos movimentos sociais e os panfletos que circulavam durante as greves só começaram a interessar os historiadores bem mais recentemente. Trata-se de importante mutação epistemológica no âmbito da historiografia, cujas preocupações passaram a centrar-se na vida cotidiana e nos indivíduos comuns, nos grupos minoritários e nos excluídos, sujeitos sociais que, por meio da palavra impressa, registraram suas reivindicações, projetos, aspirações e leituras do mundo.

O novo contexto tornou urgente inventariar e analisar esses periódicos, movimento que colocou em evidencia o desprezo das grandes instituições em relação aos impressos desta natureza. Ainda que os mesmos tenham adquirido cidadania historiográfica, isso não é suficiente para recuperar o que anos de abandono comprometeram, por vezes de maneira irremediável. Desse conjunto de transformações resultou uma compreensão bem mais complexa e diversificada a respeito da trajetória dos impressos periódicos, em sintonia com a heterogeneidade do mundo social.

Não é de admirar, portanto, que predominem as coleções incompletas e que seu estado de conservação por vezes seja precário. A despeito de todas as dificuldades, no sítio do projeto estão listados mais de 500 títulos, nas mais diversas línguas, provenientes sobretudo da Biblioteca Nacional, o que reafirma a centralidade da instituição no cenário brasileiro.

É importante assinalar os limites dos dados reunidos até agora. A lista baseou-se em informações dos catálogos que, infelizmente, não estão isentos de equívocos: títulos são grafados de maneira erronia, troca-se a cidade em que ocorreu a impressão, há enganos no que concerne à língua utilizada. Um trabalho mais detido com os jornais em francês, provenientes de uma comunidade bem menor numericamente e com caraterísticas bem particulares, já que não eram produzidos por imigrantes pobres, revelou que certas afirmações imprecisas vem sendo repetidos seguidamente.

Os pesquisadores contem com o rol publicado em 1942 por Gondin da Fonseca, [3] meticulosamente verificado por Letícia Canelas em 2007, [4] que constatou a ausência na Biblioteca Nacional de títulos mencionados pelo antecessor, enquanto outros não mencionados estavam disponíveis no momento da sua consulta. Nova verificação levada a cabo entre 2015 e 2016 revelou novas flutuações nos dados dos catálogos. Além disso, a consulta direta a alguns exemplares indicou que ambos enganaram-se ao se fiarem nas fichas da instituição, que classificam como franceses periódicos em português ou classificam meras brochuras como publicações seriadas. [5]

Se, na definição de Umberto Eco, listas práticas nos remetem a conjuntos bem definidos, não é bem esta a realidade com que se depara o consulente, que para ter absoluta certeza da natureza do que está depositado no acervo seria obrigado a tomar nas mãos e analisar cada um dos mais de quinhentos títulos até agora arrolados que, só então, ganhariam em precisão. Além disso, o rol está longe de ser fixo e novos títulos vão sendo incluídos, a depender da entrada de novas aquisições, o que exige que se vincule a lista a uma coordenada temporal precisa.

Tampouco se pode perder de vista que até agora trabalhou-se somente com algumas poucas instituições, selecionadas pelo seu porte e por disporem de catálogos on line. Contudo, museus, bibliotecas, arquivos e particulares, espelhados por todo o país, detém importantes coleções que ainda não foram repertoriadas. Por certo, caso fosse possível arrolar tudo o que se dispõe, o montante chegaria a várias dezenas de milhar.

Mas se o historiador não chega a compor uma lista poética, nos moldes do Livro dos seres imaginários de Borges, também lida com o provável. Daí o seu interesse pelas afirmações indiretas, seja proveniente de uma notícia de jornal, de um catálogo de livraria ou por algo mais vago e impreciso, como os meandros da memória. O interesse pelo que provavelmente existiu, mas já não está disponível, também lhe interessa e o afã de inventariar começa a adentrar em terreno bem menos sólido. Os indícios, as pistas e a imaginação histórica ajudam a compor dotar de maior precisão o quadro, que luta para ganhar objetividade exigida de uma lista prática por meio da citação de fontes de natureza variada. Origina-se, então, um rol que aponta para o que deve ter existido, mas já não pode ser lido ou tocado.

Mas as listas (completa ou parcialmente) práticas, não servem apenas para atestar a existência (efetiva ou provável), o olhar atento conecta um título ao outro, articula indivíduos que perambulavam entre redações, travavam batalhas e compartilhavam leituras e apreensões do mundo, mas também atacavam os inimigos, configurando relações de proximidade e distanciamento, num jogo complexo que dá vida e sentido a essas frágeis folhas que, teimosamente, sobreviveram à ação do tempo.

Imagem 01: Germania, 1880, Jahrg. III, nr. 001

Imagem 02: Germania, 1880, Jahrg. III, nr. 002.

Fonte: Biblioteca Digital da Unesp. Disponível em: http://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/23141. Acesso em junho de 2016.

Notas

[1] ECO, Umberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 211.

[2] Material disponível em: http://bibdig.biblioteca.unesp.br/bd/biblioteca_mario_andrade/livro_registro_001/ e http://bibdig.biblioteca.unesp.br/bd/biblioteca_mario_andrade/livro_registro_002/. Acesso em abril de 2016.

[3] FONSECA, Gondin da. Biografia do jornalismo carioca. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1942.

[4] CANELAS, Letícia Gregório. Franceses Quarante-Huitards no Império dos trópicos (1848-1862). Dissertação (Mestrado em História). Campinas, SP: IFCHI, 2007.

[5] Para detalhes, ver artigo a ser publicado no Medias 19.

Para citar este artigo:
LUCA, Tania Regina. Algumas notas metodológicas sobre listagens de periódicos. In Site TRANFOPRESS Brasil, disponível em: <http://transfopressbrasil.franca.unesp.br/verbetes/algumas-notas-metodologicas-sobre-listagens-de-periodicos/>